INTRACOASTAL WATERWAY

INTRACOASTAL WATERWAY – Ernesto São Thiago

Cidade Ernesto São Thiago Infraestrutura Opinião

Ernesto São Thiago é advogado atuante em Direito da Orla
e consultor em desenvolvimento náutico.
“As opiniões expressas neste artigo/coluna são de responsabilidade exclusiva do autor
e não refletem necessariamente o ponto de vista deste veículo.”

Nos Estados Unidos, é possível navegar por vias internas protegidas desde Boston, no estado de Massachusetts, até Brownsville, no Texas, margeando toda a costa atlântica e do Golfo do México. Esse extenso sistema hidroviário é conhecido oficialmente como Intracoastal Waterway (ICW), uma via navegável contínua com aproximadamente 4.800 km de extensão, que combina trechos naturais — como rios, estuários e baías — com canais escavados pelo homem. A rota permite que embarcações comerciais e de recreio evitem os riscos da navegação em mar aberto, proporcionando uma alternativa segura e eficiente para o transporte ao longo do litoral leste e sul dos EUA.

A seção mais conhecida da ICW é a Atlantic Intracoastal Waterway (AIWW), que se estende de Key West, no extremo sul da Flórida, até Portsmouth, na Virgínia, passando por cidades icônicas como Miami, Fort Lauderdale, Charleston e Savannah. Já o trecho da Gulf Intracoastal Waterway (GIWW) segue de Saint Marks, na Flórida, até Brownsville, no Texas, acompanhando a costa do Golfo. Quando somados os segmentos principais e seus canais auxiliares, o sistema ultrapassa 6.000 km de navegação interior integrada, com conectividade a cidades, portos, bases militares, centros turísticos e zonas industriais.

A ICW conta com uma infraestrutura invejável: centenas de marinas, milhares de vagas náuticas, estações de abastecimento, oficinas, píeres flutuantes, sinalização exemplar e dezenas de pontes móveis que se abrem em horários programados para a passagem de veleiros e embarcações com superestrutura elevada. O tráfego náutico é intenso, especialmente durante as estações de migração de embarcações entre o norte e o sul dos EUA. Ainda assim, as águas do sistema permanecem limpas e bem preservadas, abrigando rica biodiversidade. Em muitos trechos, especialmente na Flórida, é comum avistar manatees — os peixes-boi americanos — protegidos por legislação ambiental rigorosa, que impõe zonas de velocidade reduzida para evitar colisões.

A construção da ICW exigiu grandes obras de dragagem ao longo do século XX, e o volume de sedimentos retirado foi amplamente reaproveitado. Muitas cidades litorâneas transformaram o chamado “bota-fora” em terrenos residenciais náuticos, criando bairros planejados com canais internos navegáveis. Fort Lauderdale é o exemplo mais notório: uma cidade recortada por canais onde as casas têm garagem para o carro na frente e trapiche para o barco nos fundos. Esse modelo de urbanismo náutico transformou regiões inteiras em verdadeiros paraísos de integração entre vida residencial, mobilidade aquaviária e turismo sustentável.

No Brasil, o Império sonhou com algo semelhante. Em 1879, nasceu a proposta do Canal Príncipe Dom Afonso, rebatizado na República como Grande Canal de Laguna a Porto Alegre. A ideia era conectar as lagoas e rios do litoral sul do Brasil, permitindo uma hidrovia contínua entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, com um ramal interligando ao sistema do Prata. O engenheiro e vice-governador Polidoro Olavo de São Thiago dedicou parte de sua vida ao projeto, mas faleceu em 1916 após contrair malária durante estudos de campo no sistema lagunar. Ainda assim, entre 1908 e 1920, o governo catarinense executou o trecho entre Laguna e Jaguaruna, reduzindo deslocamentos que antes levavam até 12 dias para apenas 16 horas de navegação. O restante da hidrovia, no entanto, jamais saiu do papel.

Com satélites, batimetria digital, georreferenciamento, legislação moderna e dragas de precisão, o Brasil poderia hoje desenvolver uma rede de hidrovias costeiras de alta eficiência, integrando turismo, transporte de passageiros, logística leve e valorização imobiliária sustentável. Mas o que se vê, infelizmente, é a timidez administrativa diante de pressões ideológicas mal disfarçadas de ambientalismo técnico. Sobram homens públicos temerosos de enfrentar o discurso pseudocientífico de grupos que se opõem sistematicamente a qualquer projeto estruturante, mesmo quando devidamente licenciado e com evidente interesse público. Faltam, com raras exceções, homens destemidos e de forte mentalidade marítima como Polidoro Olavo – engenheiro, político e jornalista que lutou até a morte pela hidrovia sulista, após ter dedicado a vida a portos, ferrovias, estradas, ao transporte público e ao carvão mineral catarinense.

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